IV meeting de Parapente da Madeira

2 a 5 de Outubro de 2008

Passeio no jardim

Hoje arrefeceu bastante!

O verão a que vínhamos estando habituados neste mês de Setembro, é agora quebrado pelo arrefecimento há muito esquecido. Primeiro dia de Outubro e o frio vem relembrar que o tempo de férias já passou. Das mochilas saltam os casacos e as camisolas que passam a fazer parte de um cenário outrora de braços nus e tecidos ondulantes.
Contudo, o calor do reencontro dos amigos das asas, nome pelo qual são conhecidos os pilotos de parapente para os putos lá de casa, aquece a entrada do terminal 2. Desta vez, o destino é a primavera da Flor do Atlântico.


Umas após outra as enormes mochilas chegam ao check in. A curiosidade avoluma-se nos olhos e as perguntas já não conseguem conter-se: “afinal quem são vocês? O que trazem nessas mochilas gigantes?”. Sorriso no semblante: Somos os filhos do ar, os irmãos do sol, os “amigos das asas”. “…que vão fazer para a Madeira?”. Parapente. “Espectáculo!...”

Em 2008 comemoram-se os 500 anos da cidade do Funchal. Para gerir a efeméride, o governo regional criou uma comissão que oportunamente quis juntar num único abraço o céu e o mar. Para contribuir nesse gesto, a FPVL e a referida comissão tentaram interligar Parapente e a regata dos grandes veleiros que estaria com a aniversariante nos primeiros dias de Outubro.

Esta parceria iria fragilizar-se com algumas oscilações na gestão da referida comissão, tendo ficado a Associação de Voo Livre da Madeira (AVLM), com o total apoio da FPVL, na frente do processo.


Assim, na noite fria de 1 de Outubro descolavam de Lisboa e do Porto, dois aviões com 60 pilotos de Parapente. A maior comitiva continental alguma vez unida em rota para a Madeira.
Uma hora e meia depois, já no seio do Atlântico, a morna noite madeirense serve de fundo a um acolhimento caloroso. Um autocarro para os pilotos e uma camioneta para os equipamentos aguardavam à porta do aeroporto, o presidente da AVLM distribuía cumprimentos aos recém chegados e, pouco depois, todos se dirigiam aos seus aposentos.

Um desafio para os quatro dias seguintes viria a unir toda esta gente que acabara de chegar – voar a partir do Chão da Lagoa para a praia do Funchal. O local de descolagem tem características muito particulares e faz algumas exigências a quem quer lá descolar. Mas, tanto organizadores como pilotos estão confiantes de que esse voo se irá fazer, pelo menos em um dos dias escolhidos para este evento. Assim, “São qualquer coisa”, santo responsável pela meteorologia deste planeta, o consinta.

Dia 2, o “Jardins da Ajuda” está um autêntico reboliço com dezenas de equipamentos amontoados pela entrada. Apesar disso, o sorriso persiste e pouco a pouco tudo se vai arrumando.

 

O dia acordou cinzento e as cores adormecidas não brilham contra o azul do mar. Hoje não é dia para o grande voo. A descolagem está completamente tapada e a chuva também se faz sentir. Após uma apresentação de alguns intervenientes deste evento, os actores principais dirigem-se à baixa do Funchal para conhecerem a aterragem do desafio principal. Depois, Santana, seguida do caminho pedonal que os conduzirá ao Pico Ruivo e, posteriormente, ao Pico do Arieiro.

 



A paisagem é por demais branca apesar de insinuar esconder algo de grandioso. Os alegres marinheiros dos ares põem-se ao caminho, passando por veredas que, por entre o branco, desvendam pequenos segredos verdes ali mais em baixo. Mais ao longe um desnível impressionante.






 

A humidade é muita e a água parece tecer a harmonia de todo aquele encanto. O caminho continua e, quilómetro após quilómetro, cada uma das brechas que se abre entre o nevoeiro brinda os caminheiros com enormes vertentes, escarpas imensas e vales fantásticos.








Apesar disso, o branco persiste na paisagem. Persiste e insiste até os envolver completamente e aí a saturação é total. A água volta a harmonizar todo o conjunto, desta vez envolvendo por completo, com uma chuva consistente e permanente, todos aqueles que ousaram caminhar por tais paragens. Duas horas e qualquer coisa depois, chegados ao final do trilho, uma lareira e um chocolate quente.







Terra morna e soalheira agora tornada cinzenta, fria e molhada. Chega de água a cair de todo o lado e por vezes, também do céu. Por aqui não se voa? Vamos para o outro lado da ilha. O lado do sol, da luz das cores vivas e do manto azul.

Esta é a grande vantagem deste jardim plantado no meio do mar, está frio num lado, vamos para o outro, está com sol a mais, vamos para a água deslizante. Próximo destino, um outro monumento natural, um dos maiores cabos da Europa.





Os pilotos chegam à descolagem do Cabo Girão. Mas as asas ainda não estão lá. Alguns têm a sua no autocarro, mas desses, ninguém parece querer iniciar o dia. Quem não tem asa barafusta, quem tem, sorri discretamente. Finalmente um piloto, e depois outro. Todos querem ajudar a “empurrar”. A camioneta das asas chegou! Acabaram-se as ajudas. Agora dá para voarem todos!

Um após outro os filhos do vento correm, correm, correm e… descolam sem ser possível avistar a aterragem. É uma corrida em direcção ao imenso manto azul que se estende no horizonte, a referência da aterragem só depois de passados os primeiros metros ainda em cima do promontório que serve de descolagem. Mas, quem quer saber da aterragem? Ninguém quer aterrar. Pelo menos para já. O objectivo é o ar. Esse não falta à medida que a asa se abeira da vertente.

De súbito, 580 metros de desnível sobre o mar.

580 grandes metros em que nada desce, muito pelo contrário. A majestosa vertente impõe respeito e exalta a pequenez humana. Momentos depois e uns metros mais acima, o deslumbre da paisagem e Câmara de Lobos a seus pés.

As aterragens combinadas ficam, ou no sopé desta enormidade de pedra ou a uns quilómetros mais à frente, na Praia Formosa. A enorme vertente permite bons momentos de voo. Quem aterra em baixo sobe de teleférico, quem vai para a praia, descansa e assiste ao colossal pôr-do-sol. À noite, o Papa Manuel alimenta estes seres alados que por fim descansam.

Dia 3, o cinzento mantém-se por cima do Funchal. Hoje não é dia para o grande voo. Alguns buracos azuis anunciam melhorias, mas o vento mantém-se forte na descolagem do Chão da Lagoa e a chuva também teima em não sair.

Uma visita aos grandes veleiros e um passeio pela baixa do Funchal antecedem o voo noutro local da ilha onde o sol, com certeza, nos irá acariciar.







Os Canhas. Sotavento bem alinhado. Sim sotavento que esta ilha é um local especial. Aqui voa-se, bem e muito, mas quase sempre no sotavento. Descolagem pequena e verdinha, um a um, os pilotos vão saindo. Algum tempo depois a impaciência leva a que a praia da Madalena do Mar, já ali em baixo, não seja suficientemente atraente e a aventura lança o seu desafio. Um passeio ao longo da costa na direcção ao Funchal.

Embora com ascendentes muito fracas a chegada até Ribeira Brava não é difícil. Continuar a partir daí é algo que exigiria muito mais planeamento. Talvez, porque o meu companheiro de voo já andou por estas terras do Atlântico, julgo antever uma qualquer solução na “manga”, ao vê-lo dobrar o promontório que anularia qualquer possibilidade do regresso à praia da Ribeira Brava.

As condições de voo mantêm-se fracas e a parede, embora ensolarada, está já com alguma inclinação relativamente ao belo e laminar vento do sotavento Madeirense. Apesar disso, só nos resta insistir em avançar, a opção de um banho neste azul que se encontra aos nossos pés, não é de considerar.

Mais uma dobrinha e a velocidade da asa aumenta, o vento está demasiado paralelo à encosta. A sustentação é mínima. Há que chegar a uma praia. Ao fundo a Fajã dos Frades, ali há elevador, o que torna a subida bem mais fácil. A esta altitude e com esta velocidade, parece ser alcançável.

De pequeno lapso de tempo, toda a estrutura se desfaz e o que era uma asa passa a parecer um enorme trapo enrolado. Entre a reabertura, a recuperação e a turbulência, poucos metros restam para chegar ao chão, é imperativo decidir rápido, enfrentar o vento e aterrar. Mas a turbulência é grande e não há muito espaço para manobrar. Um cais! Parece uma boa opção!... Não!... é pequeno demais, há uma saliência um pouco maior. É aí! Não há espaço nem tempo para grandes falhas, a precisão tem de ser exemplar, meia volta, a asa estabiliza frente ao vento, tudo acalma e o chão chega suavemente. A aterragem é aveludada. Juízo meninos! Más opções destas podem vir a correr mal!... Estou no chão, mas a montanha é enorme. Gigante penedo com uns postes eléctricos a espreitar no cimo. O meu companheiro de voo atingiu a solução da Fajã dos Padres. E eu? Como vou eu sair daqui?


Depois de tudo arrumado, equipamento ás costas e perto dali umas escadas intermináveis parecem poder conduzir-me ao Campanário. Pé ante pé, degrau seguido de degrau. São imensos… centenas de degraus para sair deste local e voltar à superfície. A forma física está em alta, a temperatura é amena e não há falta de água.
À noite, já depois de um belo banho e de uma refeição, para complementar o dia, um passeio a pé até à baixa Funchalense.

 



Dia 4, a ilha acordou com um “bigode mexicano” que cruza o céu do Funchal deixando para a restante ilha o azul. Hoje não é dia para o grande voo. Apesar disso, os pilotos sobem até ao Pico Alto. O vento sopra frio de nordeste. Por se falar de frio, que tal um passeio até Ribeiro Frio? Viveiro das trutas, um pequeno passeio numa das inúmeras levadas deste local e o retorno ao autocarro. Voar! Vamos mas é voar…








A melhor opção… hummm… Canhas? Contudo, hoje é um dia diferente, hoje é dia de prova a contar para o Campeonato Regional. Aparelhos de voo para fora do saco, pontos de descolagem, de viragem e de aterragem. A manga definida parece interessante e abre caminhos por entre os céus da região. Canhas e Calheta serão os pilares do palco escolhido para esta actuação.

 

 




Vai e volta e vira, e vai e volta a ir e vira outra vez e sobe e vai e volta e vira mais uma vez, 26 Km no total. Parecem ser suficientes. O ambiente é pura competição e os manos Virgilio não deixaram o crédito por mãos alheias. O quê? Ganharam? Claro, quem mais?... Um em primeiro e o outro em segundo. Entre eles, alguns segundos, mas muito poucos. No campeonato regional, Justino e Décio tomaram conta de tudo.







A praia da Madalena do Mar está uma verdadeira agitação. Eles são mais do que muitos, vêm do ar e aterram por aqui. Qualquer sítio lhes serve. O passeio, a praia. Zig zag às pequenas palmeiras e uma pequena sustentação no muro da “promenade”. Depois um pé e logo outro e por fim, um enorme sorriso por fora do capacete.








Chegou a hora de irmos celebrar este evento com um delicioso jantar. Mas ainda é de dia, temos mesmo de comer? Continua bom para se voar. Certo! Mas é hora de jantar. Aqui o dia é sempre longo. Mas amanhã voltaremos a voar…

O jantar foi agradável. Para o dia seguinte a previsão aponta para a possibilidade de se voar a partir do Chão da Lagoa, o tal voo.

Dia 5, nuvem alta sobre o Funchal e sombra que se estende até ao mar. Vento nordeste e fé na última oportunidade de se voar sobre os grandes veleiros que durante a manhã farão uma pequena regata na baía do Funchal e mais tarde seguirão o seu caminho rumo a outras paragens. A oportunidade aparenta ter uma janela bastante limitada.

Apesar da extensão da noite anterior e do cansaço já acumulado de 3 dias de voo, assistimos, com grande felicidade, a um enorme sentido de responsabilidade e companheirismo. Os pilotos estão prontíssimos no átrio do hotel e bem cedinho, mesmo à hora combinada. As possibilidades de descolagem poderão não ser muitas, é preciso chegar cedo para se ir observando.

O autocarro inicia o seu percurso rumo ao Chão da Lagoa. Ao chegar ao topo, o frio é cortante e contrasta completamente com o ambiente morno do Funchal. As camisolas e os casacos mesmo muitos, parecem poucos. O vento é fraco, mas sopra completamente de costas. É preciso esperar que se inicie o aquecimento á frente para que esse vento seja vencido.


Alguns pilotos estão completamente prontos para descolar. Ao longe inicia-se a pequena regata. A oportunidade estava aí. O vento quase cai, o vento volta a soprar, para voltar a baixar. Entre os seus balanços caprichosos, alguns pilotos lançam-se na corrida com uma convicção inabalável de que a descolagem é possível. Para uns é mesmo, para outros, ainda vão ter de tentar outra vez, ou até outra e ainda outra.

Com alguns pilotos no ar, os que ainda estão em terra têm a oportunidade de assistir a um voo espectacular. Ida ao Cabo Girão, passagem pela vista do Curral das Freiras, Pico Alto e todo o anfiteatro do Funchal é explorado, não restando qualquer ponto por visitar. O tempo vai correndo e a regata não pára, os veleiros já estão de volta à frente do porto e mais alguns pilotos conseguem entretanto descolar. É desta ansiedade que vai avançando a manhã e que se já se aproxima a tarde. A regata decorre e os pilotos vão descolando conforme lhes é possível. Perante tanta insistência o frio já não consegue perturbar ninguém e o único objectivo passou a ser, sair para o ar. Local onde, realmente, pertencemos…

Depois de descolar tudo se torna mais fácil, sobe-se por todo o lado e nada mais consegue descer com facilidade. O voo permite alcançar o porto e chegar com cerca de 1.000 metros sobre a praia. Ao longo de toda a regata, parece que pequenos gomos de laranja das mais diversas cores cruzam o ar. A ligação pretendida – o mar e o ar. O objectivo é claramente atingido e durante 2 horas, estas asas coloridas sobrevoam a regata e vão aterrando na praia do Funchal num espectáculo, antevisto, muito esperado, mas teimando esperar até ao último momento para se concretizar. Momentos que valeram a pena para todos. Pelo espectáculo proporcionado e pelo voo.








Ninguém fica indiferente a um voo sobre o Funchal. A este prazer inerente, somam-se estas condições meteorológicas que suspendem as asas neste céu e que as fazem cruzar um ar que tem como fundo uma regata que evoca os tempos em que a Funchal era visitado por ilustres aventureiros em cruzeiro pelo Atlântico - O tempo em que os barcos eram os reis das viagens para a Madeira. Tempo agora sonhado como comemoração destes 500 anos, a ligação do mar e do ar foi concretizada num dia em que Éolo soprou docemente sobre as velas dos grandes veleiros e sustentou tal beleza voadora.

A sensação de missão cumprida é algo que nos eleva ao patamar dos deuses. Aí partilhamos da sua paz, da sua tranquilidade e da sua sabedoria. Entre muitas aventuras e acontecimentos, é essa a principal sensação que os céus Madeirenses concederam a estes passageiros do vento, filhos do ar e irmãos do sol. Voar e navegar - uma porta para o mundo.

 

 

 

 

 


http://www.funchal500anos.com/

 

Paulo Branco
Outubro de 2008